As casas do Porto com esconderijos para os liberais escaparem aos miguelistas
Durante o Cerco do Porto, em 1832-33, a cidade viveu dois ritmos ao mesmo tempo: o das ruas varridas pela artilharia miguelista e o das casas que, por dentro, se transformaram em refúgios improvisados. Havia o Porto visível — bombardeado, exausto, faminto — e o Porto oculto, onde cada porta, cada escada e cada sombra podiam significar a diferença entre ser capturado ou sobreviver mais um dia. É neste segundo Porto, clandestino e resiliente, que se encontra a história menos falada: a das casas que serviram de abrigo para os liberais escaparem aos miguelistas.
O cerco não silenciou a vida interna da cidade; obrigou-a a adaptar-se. Nas ruas estreitas da Sé, a circulação de mensageiros fazia-se através de sinais discretos, e as casas antigas eram mais do que habitações: eram pequenas fortalezas improvisadas. Na Rua da Bainharia, a proximidade das construções e a sua arquitetura irregular permitiam ligações entre caves por meio de portas interiores diminutas. Um liberal ameaçado podia entrar por uma porta e sair minutos depois noutra completamente diferente, deixando para trás perseguidores miguelistas perdidos no labirinto medieval.
A casa de Ferreira Borges, uma das figuras maiores do liberalismo português, simbolizou essa resistência silenciosa. Não foi apenas centro intelectual, mas também refúgio físico. Um dos seus quartos, com entrada disfarçada, acolheu perseguidos que ali encontravam o silêncio e a segurança que a cidade sitiada já não conseguia garantir. Enquanto lá fora ecoavam tiros e ordens militares, dentro de portas guardavam-se homens essenciais para a causa constitucional.
Nas ruas sinuosas da Ribeira, a própria geografia da cidade servia de aliada. As casas estreitas, encostadas umas às outras, escondiam sótãos com tábuas removíveis, móveis com fundos falsos e pequenas clarabóias que davam para becos tortuosos. Em noites particularmente tensas, era possível ver um liberal desaparecer atrás de um armário, subir por uma escada improvisada e reaparecer noutro prédio, já longe das patrulhas miguelistas que percorriam as ruas.
A zona dos armazéns das firmas inglesas, tradicionalmente ligadas ao comércio do vinho, foi igualmente crucial. Os comerciantes britânicos, em grande parte simpatizantes da causa liberal, mantinham compartimentos internos sem janelas nos seus armazéns — perfeitos para esconder homens ou armas desembarcadas discretamente. A actividade frenética da zona portuária ajudava a disfarçar entradas e saídas suspeitas.
Até o Mosteiro de São Bento da Vitória desempenhou um papel inesperado. Antes da ocupação militar, algumas das suas alas interiores, pouco frequentadas, acolheram oficiais e padres liberais. Velhos corredores monásticos, celas abandonadas e salas interiores tornaram-se passagens e abrigos silenciosos enquanto a cidade resistia como podia.
O Porto desse tempo era uma cidade em tensão constante, mas também de enorme criatividade defensiva. Cercada por fora, reinventava-se por dentro. Os esconderijos não foram apenas espaços físicos; foram a última respiração da liberdade em dias de sufoco. Cada soalho levantado, cada porta falsa e cada parede oca representavam a convicção de que a cidade não se renderia — e não se rendeu.
Hoje, quem percorre essas ruas dificilmente imagina o que nelas se viveu. Mas cada esquina guarda a memória de um momento em que o Porto, mesmo ferido e exausto, continuou a proteger aqueles que lutavam por um país diferente. Essas casas salvaram vidas — e, em certa medida, ajudaram a salvar a própria ideia de liberdade.
POR- 11/12/2025-
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor / O Breves Jornal / breves tv
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