Confirmar ou não, através de ADN, o corpo de D. Afonso Henriques ?
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Confirmar ou não o corpo de D. Afonso Henriques através de
ADN? Parte II
Artigo de opinião , 31/07/2025 ,
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor
No coração da cidade de Coimbra, o silêncio solene do Mosteiro de Santa Cruz guarda, há mais de oito séculos, o túmulo daquele que foi o fundador da nacionalidade portuguesa: D. Afonso Henriques. Ali, sob a pedra trabalhada do Renascimento, repousa, segundo a tradição, o primeiro Rei de Portugal. Mas até que ponto podemos afirmar, com o rigor que a História e a ciência exigem, que os restos ali depositados pertencem, de facto, ao homem que em Ourique se proclamou Rei e em Zamorra garantiu a autonomia do novo reino?
A tradição é clara. Desde 1185, ano da sua morte, que se sabe ter sido Afonso Henriques sepultado na igreja do mosteiro que ele próprio beneficiara generosamente, e onde repousavam já vários membros da primeira linhagem régia. As crónicas medievais, a documentação monástica e a contínua veneração da sua memória sempre apontaram Santa Cruz como o seu destino final. A dignidade do local, a simetria com o túmulo de seu filho D. Sancho I e o cuidado com que, em 1530, por ordem de D. João III, os dois corpos foram trasladados para os actuais túmulos de mármore, reforçam a convicção de que estamos perante os verdadeiros ossos do fundador.
Porém, a História também se faz de interrogações. E uma delas ecoa hoje com particular acuidade: temos provas irrefutáveis? A resposta, por mais desconfortável que seja, é: não, ainda não.
Nunca se procedeu, em época contemporânea, a uma abertura do túmulo que permitisse análises forenses ou genéticas. O receio de profanar a memória do rei fundador, a delicadeza ética do acto e o risco de um escândalo mediático num país sensível à sua herança simbólica sempre travaram qualquer tentativa. E compreende-se: a dignidade dos mortos não pode ser tratada como mera curiosidade científica, sobretudo quando o morto em questão é o símbolo maior da fundação de Portugal.
Contudo, a ciência moderna oferece-nos hoje ferramentas que não existiam no passado. A análise de ADN mitocondrial, as comparações osteológicas e a datação por carbono 14 poderiam esclarecer definitivamente a identidade dos restos mortais. Em Espanha, por exemplo, investigações semelhantes permitiram confirmar com grande grau de probabilidade a identidade dos restos de Cristóvão Colombo, em Sevilha. Em França, as análises ao coração de Luís XVII puseram fim a dois séculos de especulação.
Importa, pois, ponderar: não seria do interesse da História de Portugal, e até da própria preservação da memória de D. Afonso Henriques, que se fizesse essa verificação? Não para alimentar voyeurismos necrológicos ou alimentar polémicas frívolas, mas para honrar com verdade aquele que sempre foi identificado como o fundador da nossa independência.
Em 2006, o historiador António Borges Coelho afirmou que não haveria razões para duvidar da autenticidade do túmulo, dada a coerência da tradição e a ausência de qualquer indício de erro. Por outro lado, estudiosos como José Mattoso ou João Gouveia Monteiro têm sublinhado o carácter simbólico do lugar e a sua função como espaço de memória colectiva, uma função que não deve ser dilacerada por uma abordagem tecnocrática desprovida de sensibilidade.
Talvez a resposta esteja no equilíbrio. A abertura do túmulo de D. Afonso Henriques deveria ser ponderada com o máximo rigor, discrição e acompanhamento científico e ético, sob supervisão do Estado, da Igreja, da comunidade científica e de representantes da cultura portuguesa. Só assim se poderia proceder a uma eventual identificação definitiva, capaz de dar à nossa memória o que a verdade pode oferecer: a paz da certeza.
Porque a História não é só feita de glória. É feita de conhecimento. E conhecer, mesmo o que repousa sob a pedra, é também uma forma de homenagear.
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Em tempos de confusão sobre o passado, importa não só recordar, mas confrontar. Há algumas semanas escrevi um artigo onde defendi que Portugal tem o dever moral e científico de confirmar, por via do ADN, se os restos mortais sepultados no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra pertencem de facto ao primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. O texto expunha a fragilidade documental que envolve o túmulo, as transformações arquitectónicas sofridas ao longo dos séculos, o papel da reconstrução pombalina e da reforma oitocentista, e sublinhava que, perante a ausência de provas físicas definitivas, seria prudente a aplicação de métodos científicos modernos, como o ADN, para clarificar uma questão que não é apenas histórica, mas simbólica. Apontava também, com respeito, as reservas éticas e espirituais que esse gesto pode suscitar. A história não é apenas feita de arquivos, é feita também de silêncios e de ossos.
Desde então, várias pessoas perguntaram-me: mas isso nunca foi tentado? A resposta é: foi. Poucos se recordam, mas em 2006, no rescaldo da reabertura dos túmulos dos reis de França em Saint-Denis e em pleno debate europeu sobre o uso do ADN em contextos históricos, o túmulo de D. Afonso Henriques esteve prestes a ser aberto. A investigação estava a ser preparada por uma equipa de arqueólogos, com o apoio do IPPAR e do então diretor do Mosteiro, e contava com o conhecimento técnico necessário para proceder com rigor e discrição. No entanto, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, proibiu a exumação. A ordem foi clara, invocando razões éticas e patrimoniais, mas também uma sensibilidade política quanto ao simbolismo do acto. O processo ficou suspenso, sem que a opinião pública tenha sido plenamente informada. Desde então, o silêncio adensou-se e a oportunidade perdeu-se.
Este recuo em 2006 revela o quanto o Estado português se mantém ainda hesitante perante os seus próprios fundamentos. A hesitação em saber se o corpo do rei fundador repousa, de facto, onde nos dizem que repousa, é sintoma de um país que teme ferir os seus mitos. Mas a História não exige reverência, exige verdade. Não é por sabermos que D. Afonso Henriques existiu que devemos desistir de confirmar onde ele está. Pelo contrário, é por termos construído Portugal a partir do seu nome que temos o dever de cuidar da sua memória com os olhos abertos.
O debate que aqui retomo não é arqueológico, nem académico. É um debate sobre maturidade cívica. Se os franceses podem abrir os túmulos dos seus reis em nome da ciência e da preservação, se os ingleses recuperaram os restos mortais de Ricardo III num parque de estacionamento para lhe darem sepultura digna, se os próprios italianos já investigaram os ossos de Dante e Galileu com pinças de luz, porque é que Portugal não pode aplicar a ciência ao túmulo do seu rei fundador? De que temos medo?
Não proponho profanações nem gestos mediáticos. Proponho apenas que o país esteja à altura da sua própria história. Que olhe para os seus túmulos com a humildade de quem procura compreender, e não apenas venerar. Que use a razão, sem deixar de ouvir o coração. Que não tema saber.
Se, em 2006, essa coragem faltou, que 2028 – ano em que se assinalarão 900 aos da existência de Portugal – possa ser diferente. Porque o futuro de Portugal não se constrói apenas em cima da fé, mas também em cima da verdade. E porque o túmulo do rei que fundou a pátria não pode ser apenas um altar. Tem de ser, antes de mais, uma certeza.
POR ,Artigo de opinião , 31/07/2025 ,
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor / O Breves Jornal / breves tv
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